Sítio dos Sonhos | Mia Couto, a terra endurecida e o amor
Do capítulo 15, “O Sonho”, de Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra:
Eis o que sonhei: que o coveiro Curozero Muando tinha escavado em terras fora do cemitério, longe da vila. Procurara as mais distantes paragens, nas bermas das lagoas, nos outeiros de Zipene, nos vales de Xitulundo. Em todos os lugares sucedia o mesmo: não era possível penetrar no solo. Tentou-se mesmo até na secreta sombra de Ximhambanine, a sagrada floresta dos anciãos. O coveiro desabara, joelhos na areia: os deuses nos acudissem e amolecessem o chão. Mas nem reza nem lamento resultaram. Invariavelmente, a pá chocava com um duro manto de pedra. Era como se, em todo o lado, a terra inteira tivesse fechado.
Chegaram amigos da cidade e disseram-me que os mesmo fenómeno estava ocorrendo noutros lugares. Em todo o país, a terra negava abrir o seu ventre aos humanos desígnios. Enviei mensagens para o exterior. E o mesmo se passava também por lá. Em todos os continentes o chão endurecera, intransponível. O assunto tornara-se uma catástrofe de proporções mundiais. Não era apenas a impossibilidade de enterrar os cadáveres. A agricultura paralisara. Os trabalhos de construção, as minas, as dragagens nos portos, tudo estava parado.
[…] No sonho, eu regressava ao cemitério. Não encontrava o coveiro Curozero. Mas lá estava a sua irmã, Nyembeti, mais convidativa do que nunca, trajando a movediça capulana que mostrava mais que cobria.
Instigando-me com gestos e assobios a moça me conduziu para um local que só ela conhecia, no sopé de um monte. Escolheu entre fragas e cavernas e se meteu por um esconso recanto. Ali onde a luz mal chegava, ela se deitou na terra escura e me chamou.
[…] Meu corpo cobriu o dela, os braços me suportaram para não pesar sobre ela. Mas ela me puxou os pulsos e levou as minhas mãos a que lhe cobrissem os seios. E depois visitassem o seu corpo, seus húmidos segredos. Ali no escuro fizemos amor. Nossos gemidos se amplificavam, ecoando nos redondos da caverna. No final, uma ave se soltou do tecto, esbranquiçando as penumbras.
[…] — Agora, venha comigo. Eu trouxe-lhe aqui para lhe mostrar.As mãos, em concha, escavaram a terra. E o assombro me catapultou o peito. O solo ali era fofo, minhocável, esfarelento. […]
— Como é que você encontrou este lugar?Mas ela negou. Os lugares não se encontram, constroem-se. A diferença daquele chão não estava na geografia. Apontou para nós dois e embrulhou as mãos para, em seguida, as levar ao coração. Ela queria dizer que a terra ficou assim porque nela nos amáramos? Seria o amor que reparara a terra? Fazer do chão um leito nupcial, seria isso que amoleceria a terra e nos punha de bem com a nossa mais antiga morada? Talvez.
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